Saio de férias e fico, na medida do possível, acompanhando a surreal discussão sobre as biografias. Sendo um devorador deste estilo literário (autorizada ou não) e tendo entrevistado recentemente dois dos maiores biógrafos do mundo, ainda me surpreendo com a posição de certos artistas e da nossa Justiça, que permite que uma obra seja recolhida por que o objeto do texto não gostou de algo que foi revelado.
As autobiografias têm um valor inestimável, já que alguns aspectos e incidentes só podem ser explicados por quem estava lá. Porém, como todos sabem e, quero acreditar, tenha sido o caso recente de Chico Buarque, a memória trai.
Infelizmente, por conta de uma posição radical e “censurista” do rei Roberto Carlos, e que ganhou o apoio de vários nomes da música, aparentemente por conta de um apoio na questão dos royalties – mas isso é outra história – parece ter-se aberto um abismo entre liberdade de expressão e privacidade. Proibir a divulgação de qualquer fato é censura (ponto). Privacidade é algo que uma figura pública deveria saber que não tem. Pode até conseguir esconder melhor sua vida, mas se quiser tranquilidade, não entre para o mundo artístico ou não faça (nunca) nada do que se possa arrepender.
A impressão que fica é a de que há uma inundação de biografias não autorizadas e que expõem uma série de inverdades sobre nossos astros e estrelas (da música, principalmente), o que é uma inverdade. Um amigo até me disse: “Quem iria escrever uma biografia do Djavan, por exemplo? Pior, quem iria LER uma biografia do Djavan?”. Mas, gostos a parte, a vida de certos personagens fazem parte da história do país. Como falar em jovem guarda sem citar Roberto e Erasmo, ou como falar de tropicália sem Gil, Mutantes ou Caetano? A simples ideia de que nada pode ser publicado sem o “consentimento” dessas pessoas é uma distorção de qualquer conceito moral e lógico que possa existir.
A discussão também serviu para amplificar o coeficiente de escrotidão de certas pessoas, como a Sra que foi até um programa de TV e tentou constranger uma jornalista, falando de sua homossexualidade – como se ela mesmo não possa ser lembrada de nada parecido em sua passagem pela Terra. A repercussão do episódio foi tão ruim e a receptividade do público (que ficou ao lado da liberdade de expressão) foram tão fortes que foi preciso um “recuo estratégico” e até mesmo uma “entrevista Seinfield” – aquela que não diz nada – de Roberto Carlos ao Fantástico foi preparada, para tentar “amenizar” a situação.
Que qualquer um tem o direito de se proteger de calúnias e difamações, mas, mais que isso, todos têm o direito de divulgar qualquer fato que possa ter relevância na história de alguém ou de algum movimento cultural. Resta definir o que é calúnia e como esse ressarcimento vai acontecer. Tirar uma obra das prateleiras é pura e simplesmente uma atitude arbitrariamente censurista.
Uma vez Erasmo Carlos me disse: “Tem coisas que só Roberto e Erasmo podem sabem. Quem fez o que. E tem vezes que nem nós mesmos lembramos”.
É isso, Erasmo. Pode ser que vocês não lembrem de muitas outras coisas, mas que um amigo, amante, músico, ex-amigo, empresário, porteiro ou qualquer outra pessoa, tenha lembranças que divirjam das suas e que podem até estar mais corretas. Quem, com mais de 30 anos, nunca passou por um evento no qual a sua memória vai de encontro com a de outros que testemunharam o mesmo fato? Você confia 100% na sua versão? Jura?
Só no último mês li três biografias (por acaso, todas não autorizadas), com fatos que se repetem nas três obras, mas sempre com testemunhos diferentes, de personagens que vivenciaram o acontecido. Se há incorreções em algumas (ou todas) elas? Provavelmente sim, mas isso não indica desonestidade do autor ou dos entrevistados. Imagine se não houvesse uma biografia não autorizada de Eric Clapton, por exemplo, já que ele mesmo escreveu na sua auto, que não lembra de muita coisa que aconteceu em meados da década de 70.
Pelo menos vimos que a sociedade se posicionou ao lado da liberdade e que figuras escrotas tiveram que sair da linha de frente, já que não têm nível para poder discutir com um mínimo de educação o assunto.
Que o STF tenha uma posição simplesmente democrática e constitucional sobre o assunto.
Agora chega, né?