Esse texto – publicado no O Globo do dia 4 de novembro – se encaixa muito bem no que penso e muito bem para várias pessoas que conheço. Pobres delas.
Ficar sozinho no Brasil
Roberto Da MattaNo fundo, no fundo, a declaração-confissão do Lula de que, quando tenta ler alguma coisa, tem azia é chocante e descabida para o Brasil como um país, mas é sincera e perfeitamente compreensível para o Brasil como sociedade. Não fica nada bem que um presidente de uma nação que se deseja moderna continue afirmando a sua aversão pela leitura, que é o centro dos processos educacionais. Mas não é algo do outro mundo que, como uma pessoa criada numa família brasileira, a leitura possa causar mal-estar.
Falamos muito na necessidade de ler e estudar, mas examinamos criticamente as condições sociais mínimas que tais atos requerem. A maioria dos intelectuais brasileiros que conheço teve que lutar para ler um livro dentro de suas casas, independentemente de nível social. É que, se somos controlados pelo Brasil como país, com suas multas e dispositivos legais (que, sabemos bem, operam mais para os de baixo do que para os de cima); somos também vigiados pelas nossas famílias cujo princípio básico é evitar a solidão de seus membros. Qualquer tipo de isolamento ou de individualização, seja porque a pessoa fala pouco ou porque fica dentro do seu quarto (quando o tem), é tomado como sintoma de que algo não está bem.
Criamos nossos rebentos para serem sociáveis e dependentes dos mais velhos e exemplos para os mais novos. Olhamos mais vertical do que horizontalmente. Dessa jaula de carinhos e favores feita por relações perpétuas (pois nem a morte rompe com elas), não há escapatória. Nossas crianças não podem ficar sozinhas. A todo momento um adulto as excita, solicitando um olhar ou sorriso. É enorme a carga social que despejamos uns nos outros. Disso resulta uma aversão à solidão que, no Brasil, é castigo. Na América ensina-se como fazer amigos, no Brasil precisamos do manual de como podemos nos livrar daqueles que, por amor, nos sufocam.
É óbvio que uma pessoa assim socializada tenha dificuldades em ler e estudar, pois essas são atividades — como descobriram os monges e profetas — que demandam um mínimo de isolamento e de autonomia, esses irmãos de um silêncio que é mandamento principal das bibliotecas e de todos os ambientes de leitura. Exceto, é claro, em nossas casas onde todos os que gostam de ler e estudar desenvolvem a incrível técnica de realizar isso conversando com parentes, criados e amigos porque não fica bem um isolamento, que é o primeiro sinal de loucura.
Quando lê, Lula sente azia. No meu caso era pior: eu tinha medo de ficar louco porque ouvi muitas vezes o vaticínio segundo o qual quem lê muito vira biruta porque fica com muita ideia na cabeça! Isolar-se para ler por longas horas era complicado porque lhe batiam na porta; ou a abriam para “ver se estava tudo bem”. Quem não levou aquele susto de arrancar o coração quando, na única e legítima solidão de um banheiro, lia encantado algum livro pornográfico, quando uma bateção bíblica na porta o tirou do tal pecado solitário?
Não é interessante e significativo que o nome do sexo consigo próprio, isso que afinal de contas é, quem sabe, a primeira experiência de um aprofundamento consciente de uma subjetividade consigo mesmo, seja chamado de “pecado solitário” entre nós? Quando aprendi o tremendo pecado desta atividade, não concordei com “solitário”. Porque eu jamais estava só. Sempre, naquele tipo de solidão, tinha sempre alguém — irresistível e desejável — me acompanhando. Lembro-me de uma vez que lia, trancado debaixo de sete chaves no banheiro lá de casa, o livro “A ceia de Cleópatra”, uma descrição, digamos, ultranaturalista de um festim romano, quando bateram na porta. “O que está acontecendo aí dentro? Tá na hora de sair!”, disseram com voz firme porque eu havia passado do tempo normal de ficar sozinho no banheiro. Saindo do transe, eu tive que me livrar de uma multidão. Principalmente de um monte de belíssimas patrícias e escravas romanas que me acariciavam e serviam. Solitário uma ova! Eu estava, isso sim, num outro mundo.
Em suma: é mais ou menos proibido ficar sozinho no Brasil. Somos obrigamos a nos ligar uns com os outros todo o tempo, mesmo diante das coerções da vida urbana. A recusa ao relacionar-se ainda é considerada uma anomalia, uma antipatia ou uma anormalidade. Na rua, quem recusa a conversa fiada é o antipático modelar; em casa, é o doente mental em potencial. Estar “cismado”, ensimesmado, trancado em si mesmo é sinônimo de raiva ou desequilíbrio emocional. Nos Estados Unidos, dá-se o justo oposto. Falar como um mamangaio (cruzamento de uruguaio, argentino e paraguaio), conversar como um brazuca, é sintoma de ausência daquela concentração que permite os grandes feitos e faz parte da mitologia dos grandes cientistas, profetas e intelectuais. Representa a imagem menos abonadora ou bonita da Carmen Miranda. Pois todos saíram do mundo, aceitaram a solidão, tornaram-se sós por força de um ideal ou crença e, numa outra etapa, retornaram ao mundo social triunfantes, reconhecidos como grandes. Tal como ocorreu com Robson Crusoé ou, melhor ainda, com Edmond Dantés, o Conde de Monte Cristo, o período fora do mundo foi essencial para seu triunfo junto à sociedade. Já, entre nós, o isolamento autoimposto pelas circunstâncias da desonra matrimonial num Maciel transforma-o num Antonio Conselheiro, num “gnóstico bronco”, no dizer de Euclides da Cunha.
Moral da história: jamais fique só. Tenha sempre uma turma, uma seita. De preferência seja dela o chefete ou mentor ou presidente. O isolamento é sinal de perturbação. Os laços sociais são prescritivos e inevitáveis. Fora deles, sem grupo ou partido, você não existe e nada pode. Agora, convenhamos que numa sociedade assim constituída ficam complicados a leitura e o estudo. Bem como a velha e gozosa solidão…
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