A cultura da vergonha e cultura da culpa

A procura de culpados e a imposição da vergonha são atitudes sempre repetidas na sociedade. O tema sempre esteve na minha pauta, mas o texto abaixo – tirado do blog Filosofia é o limite!!! – resume bem o meu pensamento.

Reflitam.

A cultura da vergonha, a cultura da culpa e a cultura da responsabilidade ética

Talvez todas as épocas tenham sido conturbadas, o que varia ao longo da história são as áreas onde os conflitos e as crises estruturais ocorrem. É nessas áreas que se situam os desafios mais importantes que a humanidade tem que resolver em cada momento da sua marcha rumo ao futuro.

E esses desafios assumem a forma de problemas colectivos que batem à porta, por assim dizer, dos indivíduos. Todos são convocados para a resolução desses problemas. E isso manifesta-se, a um nível mais englobante, na forma como as instituições se organizam. Os laboratórios científicos, por exemplo, não investigam todos os problemas que estão abertos à investigação científica em cada um dos seus domínios, há prioridades económicas, sociais, políticas e culturais que determinam o que se investiga e, até, o ritmo da investigação.

Ora, penso que não andaremos longe da verdade se considerarmos que o grande desafio da nossa época é o da responsabilidade ética, assumida a todos os níveis da acção humana, seja a nível individual, seja a nível colectivo. Essa responsabilidade abarca o horizonte da consciência moral, individual, onde os sistemas de moral de origem religiosa ou ideológica parecem insuficientes para satisfazer as exigências morais dos indivíduos, mas não se esgota nele. De facto, os homens de hoje, dada a evolução das tecnologias da informação, vêem alargado o âmbito da sua intervenção, o que, como seria de esperar, alarga também o campo da responsabilidade dos indivíduos, quer em relação a si próprios, quer em relação aos outros. As mudanças estruturais das sociedades, bem como o cada vez maior contributo das descobertas científicas para a emancipação do indivíduo face a determinismos de carácter biológico, leva à falência desses sistemas de moral tradicionais que não conseguem dar resposta à ânsia de autonomia que parece ser uma tónica dominante, se bem que a ilusão e a alienação estejam presentes ao nível da nossa vida quotidiana, alimentadas pelos media e pelo consumismo. No entanto, a moral sexual nos dias de hoje tem que dar conta de uma imensidade de problemas e de exigências a que os sistemas de moral tradicionais não conseguem atender.

É aqui que a filosofia se torna indispensável. Pois a ética tende a substituir a moral.

Em vez de regras impostas de fora, a consciência moral do homem contemporâneo parece preferir a adesão a princípios de orientação da acção, assentes na liberdade e no primado da autenticidade do pensamento emancipado. Mesmo a razão como era vista no passado, na generalidade dos sistemas filosóficos, como uma faculdade tutelar desenraizada do pulsar da vida tal como ela se dá ao indivíduo, na sua radical busca de um sentido, tende a dar lugar a uma visão englobante do homem e do mundo, dentro da qual as dicotomias tradicionais (emoção/razão; razão/experiência; espírito/matéria; pensamento/acção,etc;.) têm que ser profundamente repensadas e, necessariamente, ultrapassadas.

A responsabilidade ética abre-se, também, a comportamentos e atitudes pertencentes à esfera pública, abarcando a atitude dos indivíduos, e das sociedades, perante o ambiente, as migrações, a guerra, o desenvolvimento sustentado.

Vemos que os sistemas de moral tradicionais estão imbuídos de unilateralismo, alimentando, muitas vezes, o fanatismo, a intolerância e a recusa do direito à diferença.

O terrorismo global, os fanatismos religiosos, a cegueira política que, muitas vezes, leva a que a expressão da vontade maioritária dê origem a formas intoleráveis de manipulação política, todas estas formas de culto da intolerância, são obstáculos à responsabilidade ética como desafio fundamental do nosso tempo.

Não estão já em causa, como no tempo da guerra fria, concepções opostas sobre a organização das sociedades, mas o direito à verdade existencial dos indivíduos, dos povos e das culturas. O terror dos campos de extermínio da 2ª guerra mundial (e de tantas outras formas de barbárie, como os Goulags, a tragédia cambodjana, etc., etc.) assentou precisamente nisso, na recusa da verdade existencial do outro. Decretou-se a inconformidade antropológica de grupos étnicos e de formas de estar na vida. E passou-se à prática.

Hoje em dia o problema do terrorismo assenta precisamente nisso, não basta não tolerar os outros, rebaixá-los à condição de seres inferiores, há que combater a possibilidade da sua existência. Não se combatem já as ideias, as ideologias, os valores religiosos e políticos, combate-se o direito à existência de todos aqueles que não estão em conformidade com certos sistemas de crenças e de valores.

E isso é vivido nas relações entre indivíduos na nossa sociedade, uma vez que esta tendência não nasce dentro de algumas culturas, mas é global. Assim, quando recusamos aos nossos vizinhos, aos nossos colegas de trabalho, aos nossos concidadãos, o direito de serem em verdade, na sua diferença, estamos a alimentar o monstro que gera as fomes e as guerras, dá origem ao terrorismo e à exclusão. A xenofobia, a exclusão social, o quietismo político-social em nome dum hedonismo consumista que torna tudo indiferente, são sintomas que devem levar a que devamos combater esse mal, começando por nós próprios, pela forma como olhamos para nós e para os outros.

A cultura da responsabilidade ética é uma exigência civilizacional que está profundamente enraizada na história da humanidade (e do Ocidente). Caracteriza-se pela emancipação do indivíduo em relação a tudo o que torna a diferença um impedimento à sua plena realização como pessoa. As diferenças entre sexos, por exemplo, não devem dar lugar à discriminação das mulheres (ou dos homens). As diferenças no que respeita à orientação sexual, por exemplo, não devem dar lugar, igualmente, a qualquer tipo de discriminação.

E só há uma vacina para essa doença, ou um antídoto para esse veneno: a argumentação, a discussão livre, a abertura à troca de ideias e de argumentos.

E neste aspecto os sistemas de ensino e de educação devem abandonar o modelo da massificação, próprio da era industrial, e devem abrir-se cada vez mais à diversidade.

Há um longo caminho de evolução dos sistemas de moral até à emergência da cultura da responsabilidade ética.

As sociedades tribais, de carácter predominantemente nómada, deram origem à que se pode chamar cultura da vergonha. Nestas culturas as regras morais fundamentam-se na submissão do indivíduo ao grupo consanguíneo, seja ele a família, a tribo, o clã ou, até mesmo, nas sociedades mais próximas de nós em termos históricos, a pátria. Nessa cultura a propriedade privada não é uma prioridade, pois os bens tendem a ser partilhados pelos membros do grupo familiar (podemos chamar-lhe assim). A moral sexual está intimamente ligada às normas que presidem ao comportamento dos indivíduos dentro do clã, ou da família próxima ou alargada. E a vida da comunidade familiar obedece a uma rigorosa hierarquia que o chefe de família (o patriarca ou a matriarca) como líder incontestável.

Neste tipo de cultura aplica-se o preceito “olho por olho, dente por dente” (a chamada lei de Talião). As infracções são punidas duma forma directa e rigorosamente proporcional. Se um indivíduo mata outro, é morto, muitas vezes da mesma forma. Por vezes a punição recai sobre um membro do mesmo clã a que pertence o ofensor. O que importa é a retribuição. Dentro deste tipo de sociedades a vingança é considerada um direito e um dever, invioláveis. Há muitos exemplo, nos dias de hoje, de sociedades que vivem ainda de acordo com este tipo de mentalidade. Entre nós a etnia cigana é um exemplo claro disto. E no mundo rural há ainda muitos afloramentos desta forma de viver os preceitos morais.

Mesmo na Grécia antiga, considerada o berço da civilização ocidental, as normas morais derivavam da cultura da vergonha.

Nesse tipo de sociedade não há distinção entre vida pública e vida privada. Todos os comportamentos dos indivíduos pertencem, por direito, à esfera pública. O indivíduo só encontra justificação para a sua existência e para a sua aceitação como pessoa de bem, no grupo familiar ou social. A reprovação social determina a desgraça moral. O aplauso social, determina, por sua vez, o reconhecimento da dignidade moral do indivíduo.

Pode ver-se que neste tipo de mentalidade a consciência moral dos indivíduos não é verdadeiramente autónoma, pois depende da sanção social. Não se colocando nunca a hipótese duma justificação do indivíduo contra a vontade colectiva.

E neste aspecto a condenação de Sócrates não deixa de ser, ao mesmo tempo, paradoxal e profundamente elucidativa.

Pois Sócrates, mesmo rejeitando o fundamento das acusações que lhe foram movidas, dá sempre prova da sua inegável conformidade com a vontade colectiva. Mesmo sabendo que é injustamente acusado e condenado, aceita a condenação em nome do seu dever (moral) como cidadão, que é o mesmo que dizer, como homem. Mesmo quando a sentença lhe confere a possibilidade de optar pelo exílio, evitando a sua execução, Sócrates coloca o dever cívico (moral) acima da sua sobrevivência física. Por esta razão recusa, igualmente, a fuga quando os seus amigos e discípulos se propõem subornar os carcereiros e os magistrados.

Esta atitude de Sócrates é responsável pela exigência do primado do Direito que, desde então, se impõe no mundo antigo, assumindo a sua mais clara expressão no Império Romano. Não que os desmandos não se sucedam. Mas essa preocupação está no centro da mundividência cívica que os Romanos impuseram ao mundo Ocidental.

Com o advento do cristianismo, uma outra forma de encarar o fundamento da moral se vai impor, progressivamente, ao mundo Ocidental.

A cultura da vergonha dá lugar à cultura da culpa (é de notar que em muitos casos as duas culturas coexistem). A origem da sanção moral é interiorizada. Mesmo que não exista uma sanção social em relação a qualquer comportamento individual, a consciência moral do indivíduo pode sancionar negativamente esse comportamento. Mais: mesmo a mera intenção de agir, por mais fantasiosa que seja, pode levar ao sentimento de culpa. Se um indivíduo tiver o desejo de praticar uma acção contrária ao seu dever moral, mesmo que não pratique, de facto, essa acção, ele sente-se culpado. Isto deriva da concepção cristã de pecado que ganha uma densidade diferente da que tinha a prática do mal no âmbito da cultura da vergonha. Nas sociedades centradas na vergonha, o “pecado” recaía sobre o grupo social e não só sobre o indivíduo que o praticava. E transmitia-se como uma doença infecciosa, ou genética. Os pecados dos pais recaíam sobre os filhos, muitas vezes transmitia-se por várias gerações. E com eles, o direito à vingança.

No cristianismo a condição de pecador é herdada geneticamente, por assim dizer (o pecado original), o que garante que todos os indivíduos são portadores de culpa e que a suspeita é legítima, mesmo em relação a pessoas que passem como honestas e boas aos olhos da sociedade. Assim todos são encarados como capazes de mal e é necessário que se interiorizem nos indivíduos mecanismos de vigilância e de punição que levem a que mesmo a interioridade da consciência, um reduto que escapa à vigilância externa, seja permanentemente escrutinada. Por isso, a educação tornou-se repressiva de tudo o que esteja ligado ao desejo e, principalmente, ao desejo sexual.

O medo e a culpa reinam sobre os indivíduos como fantasmas insaciáveis, pelo menos desde há dois milénios. O medo da justiça divina e o sentimento de inconformidade com os mandamentos divinos, aliado a um culto do sofrimento como forma de libertação, de redenção, mantiveram os indivíduos reféns da sua consciência, sem poderem assumir, de forma plena, a sua liberdade.

Se a cultura da culpa valoriza o indivíduo, não o liberta, não fomenta a sua autonomia, indispensável para que se eleve, de forma plena, à condição de Pessoa. E isto porque a fonte da legitimidade moral é exterior à consciência do indivíduo. Depende de Deus ou de qualquer outra instância que o substitua, como por exemplo, o Estado, o Partido, a Economia.

A cultura da responsabilidade ética nasce da exigência de valorização da Pessoa, a cima de quaisquer outras instâncias, enquanto indivíduo consciente de si e capaz de se auto-determinar, com base numa liberdade inalienável e constitutiva do ser do homem. Ser homem é ser livre.

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