Esse texto foi escrito por Maurício Tagliari e publicado no Enoeventos, do querido Oscar Daud. A leitura é obrigatória!
Prometo que não vou reclamar novamente dos altíssimos impostos cobrados sobre os vinhos no Brasil. O assunto é outro. Sou só eu ou mais alguém percebe que está na moda falar mal de quem gosta de vinhos? Em alguns círculos e na mídia em geral, parece que o legal é ironizar quem demonstra um interesse mais sério a respeito de vinhos. Basta você tentar sentir o aroma de um deles em um restaurante mais descolado que alguém da mesa do lado olha torto, com ar superior, como quem diz “olha aí mais um enochato”! Às vezes, até mesmo alguém da sua mesa solta uma gracinha a respeito.
Pior! Todo texto de colunista ou blogueiro mais esperto, até os que tenho em alta conta, não perde a oportunidade de dizer o quanto é ridículo girar taça em público, que não se deve enfiar o nariz no copo, que é bobagem olhar a rolha, etc… E todos pregam na testa do coitado do enófilo o epíteto “enochato”. Já soube de conhecidos que, apesar de gostarem de bons vinhos, intimidam-se de pedi-los em público. Passaram a pedir cervejas mais finas. Mas, mesmo assim, disfarçam ao “cheirar” a bebida para não serem censurados ou ironizados.
Me pergunto qual seria a razão desta fúria. Inveja da sensibilidade alheia? Medo do desconhecido? Preguiça? Necessidade moderna de parecer tosco para ser interessante? Ou todas as anteriores? Pela minha experiência no mundo da música, aposto na última alternativa. É um estranho fenômeno moderno, este. Moderno no sentido do início do século XX. Mas que agora chegou até à classe média.
Para ser cool e sofisticados, temos de ser desleixados, proto-ignorantes. Temos de valorizar a estranheza e não gostar do que seria de bom tom gostar. Somos todos um pouco dadaístas, um pouco snobs e, por que não, um pouco toscos! Mas com “atitude”.
Por que cair de pau justamente nas “enopessoas”? Há chatos muito piores e mais ruidosos. Os cinéfilos, por exemplo. Outro dia quase saí correndo ao escutar as bobagens que uma atriz cult vomitava na fileira de trás do cinema para suas duas amigas! Mas não me ocorreu chamá-la de “cinechata”… E os maníacos por futebol? Alguns beirando o insuportável. E sem freios civilizatórios. Quem os trata por “futechatos”? E os nerds? E os geeks? A lista é enorme.
O termo enochato se disseminou de tal maneira que passou a ser arremessado contra qualquer pobre apreciador de vinho. Além disso, é uma jabuticaba! Só existe no Brasil. Há o wine bore em inglês mas não é exatamente a mesma coisa. Ou o arcaico italiano enolaio. Mas não destilam o mesmo preconceito contra o cidadão que tenta simplesmente degustar seu vinhozinho sem fazer mal ao próximo.
É claro que há chatos em qualquer atividade, trabalho ou hobby. E provavelmente um ou outro novo rico, snob e chato pode ter irritado muita gente com seu papo de vinho. Talvez até mesmo algum inocente apreciador mais entusiasmado tenha atravessado um pouco a linha da chatice. Mas, convenhamos, a reação da sociedade foi exagerada: cunhou um neologismo!
Penso tudo isso após um jantar com Maurizio Zanella, o proprietário, enólogo e ideólogo da Ca’ del Bosco, uma estrela da Franciacorta, região que produz o melhor espumante da Itália. Do nível dos melhores Champagnes.
Seu charme despojado, entusiamo e conhecimento de causa nos remete a um mundo em que apreciar vinho é a coisa mais natural. Um mundo onde não existem nem enochatos nem seus críticos. Um mundo no qual todos somos curiosos, honestos e sem preconceitos.
Zanella contou sua trajetória de estudante relapso de uma família sem tradição vitivinícola a produtor de vinhos finíssimos (e caros) com humildade e bom humor. Contou-nos que, ironicamente, os jogadores brasileiros do Milan, clube do qual é conselheiro, têm um grande interesse e uma cultura de vinhos maior do que a dos jogadores italianos. Confirmou, inclusive, que o capitão Cafu é um connaisseur.
Criticou fundamentadamente as taças flûte para beber espumantes mais encorpados e aromáticos como os Franciacorta e Champagnes. E mais, enfiou no copo seu nariz italiano despudoradamente para apreciar os deliciosos aromas de seus vinhos. E por que não seria assim? Afinal, ele nem sabe da existência dos enochatos. E não tem nenhuma razão para se sentir intimidado pelos “espertochatos”.