Veículos de comunicação públicos no Brasil: uma boa ideia, ainda bem longe da BBC

Toda a iniciativa que leve cultura, entretenimento e informação ao brasileiro, principalmente os que vivem mais longe dos grandes centros, é sempre bem vinda.

ebc-sede“Possibilitar que os cidadãos consigam se comunicar por meio do rádio em locais onde eles não têm outro acesso à comunicação, porque não tem sinal de internet, celular não pega, nem televisão”. Esse é, para Mário Sartorello, gerente da Rádio Nacional da Amazônia, o papel da instituição, uma das nove emissoras públicas produzidas pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Criada por meio da Lei 11.652, de 2008, a EBC é hoje a principal expressão do sistema público de comunicação. Ainda em construção, esse sistema só veio a ser regulamentado com o estabelecimento da norma, embora a Constituição Federal, que estabelece a complementariedade dos sistemas público, privado e estatal, já apontasse a sua necessidade.

“Até então, você tinha experiências regionais de emissoras não comerciais, a maioria delas não era pública, era estatal, eram veículos vinculados aos governos dos estados”, destaca o professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Laurindo Lalo Leal Filho.

O atraso na criação do sistema público e o fato de o Brasil ter, historicamente, privilegiado os meios comerciais deixaram algumas lacunas no modelo de comunicação do país. Uma delas é a pouca clareza sobre o caráter diferenciado dos veículos públicos.

Para o diretor-geral da EBC, Eduardo Castro, a população ainda precisa se apropriar desses meios. “Essa é, talvez, a coisa mais importante: essa percepção da população de que isso aqui é um meio de comunicação de todos nós brasileiros. Cada um de nós tem um pedaço e o país como um todo é o dono dele, na sua integralidade”, destaca.

De acordo com a legislação, o sistema público tem o objetivo de promover acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conteúdo; produzir conteúdos educativos, artísticos, culturais, científicos e informativos; estimular a produção regional e independente, dentre outros.

Para tanto, deve ter “autonomia em relação ao governo federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão”, bem como garantir “participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira”.

Esses princípios norteiam a programação dos veículos, que privilegiam programas infantis, jornalísticos, culturais e de debates. Embora todos os especialistas consultados pela Agência Brasil apontem que esse modelo ainda precisa ser consolidado, inclusive para garantir mais independência em relação aos governos, é possível perceber diferenças na cobertura, que tem como foco o cidadão, independentemente de aspectos comerciais.
O exemplo europeu

Especialista em estudos sobre comunicação pública, Laurindo Leal Filho acredita que, desde a criação da EBC, o debate sobre os meios públicos tem crescido no Brasil. Uma diferença significativa em um país em que “muitas gerações nasceram e morreram achando que a comunicação é um negócio privado”.

Ele compara a situação com a vivenciada no continente europeu, onde, desde o surgimento do rádio, na década de 1920, os estados nacionais tomaram para si a incumbência de promover a radiodifusão. O caso mais emblemático é o da britânica BBC, do qual se destacam os dois elementos centrais para que um veículo possa efetivamente ser considerado público, na avaliação do professor: a legislação e os mecanismos para garantir a participação social.

“No caso da BBC, a participação é alta por meio dos conselhos, dos mecanismos e órgãos reguladores que eles têm para que o público possa intervir no meio público e, principalmente, pelo financiamento, que é todo feito pelo público”, explica.

Para financiar a produção e a transmissão de TV, dos serviços de rádio e internet oferecidos à população pela BBC, é cobrado um imposto anual por domicílio que tenha aparelho de televisão. O valor, que vai diretamente para os cofres da empresa, está em torno de R$ 550.

“Isso tem dois aspectos. Primeiro, o aspecto da independência total em relação ao governo e ao Estado. E, em segundo lugar, gera no público um sentimento de poder sobre a BBC. Se eu pago, eu exijo qualidade. Há um estreitamento muito grande da relação entre o cidadão e a empresa. As cobranças são muito fortes, e há espaços para que elas sejam feitas, tanto na mídia quanto em mecanismos que facilitam essa interlocução dos cidadãos com a BBC”, detalha Laurindo Leal.

O caso britânico não é o único. Alemanha, França, Canadá, Argentina, Colômbia, Portugal e Japão, entre outros países, também têm meios de comunicação sem fins comerciais. A forma como se relacionam legalmente com o Estado e como angariam recursos difere em cada caso. Alguns não podem veicular publicidade para não comprometer o conteúdo público com a busca pela audiência e a veiculação de propagandas. Outros sistemas adotam a publicidade, como as emissoras da Alemanha, que também cobram taxas anuais pela prestação dos serviços.
Os desafios institucionais dos veículos brasileiros

No Brasil, um dos desafios para a consolidação do sistema público é a diversificação das fontes de renda, segundo Eduardo Castro. Hoje, a EBC, por exemplo, recebe recursos do Estado, via Secretaria de Comunicação Social, bem como de serviços que presta, como produção de publicações, e ainda com a exibição de apoio institucional, já que a empresa é proibida por lei de veicular propaganda.

De acordo com Eduardo Castro, essa diversificação será maior a partir da arrecadação dos recursos da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, instituída pela lei que criou a EBC.

Segundo a norma, os recursos da contribuição, formados por um percentual do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel), devem ser divididos da seguinte forma: 75% para a EBC; 2,5% para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que recolhe a taxa, e 22,5% para as demais emissoras públicas. A forma como será feita a distribuição para as demais emissoras ainda não foi definida.

Desde 2009, os valores vinham sendo depositados em juízo, devido a contestação das empresas de telecomunicações. Após disputa judicial, os recursos começaram a ser liberados no ano passado. Apenas a liberação dos depósitos da empresa TIM aportará cerca de R$ 320 milhões, que irão para a Conta Única do Tesouro Nacional. Será preciso, agora, garantir o envio às emissoras.

Outra meta da empresa é ampliar a participação social. Hoje, a EBC tem um Conselho Curador que é formado, segundo composição descrita em lei, por 22 membros: 15 representantes da sociedade civil, quatro do governo federal (ministros da Educação; Cultura; Ciência, Tecnologia e Inovação; e Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República), um da Câmara dos Deputados, um do Senado Federal e um funcionário da própria empresa.

Embora os representantes da sociedade civil sejam indicados e recebam votos de outras entidades, cabe à Presidência da República indicar os representantes que assumirão o conselho. Um modelo que, na opinião de Laurindo Leal, limita a participação. O Conselho Curador da EBC tem atuado frequentemente com a sociedade, promovendo audiências públicas, reuniões abertas e debates sobre temas diversos, como a qualidade da cobertura, a autonomia no conteúdo e na participação. A instância também opina e interfere na elaboração de avaliações e metas da empresa.

A existência de conselhos como o da EBC deveria ser uma das marcas das emissoras públicas. No entanto, poucas são as que têm conselhos eleitos e atuantes, lamenta o presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), Pedro Osório.

Ele defende a criação de normas para organizar a atuação dessas emissoras, diferenciando-as dos meios estatais, especialmente nos casos de veículos ligados a administrações estaduais e municipais.


Digitalização: problema ou possibilidade de ampliação?

Osório também destaca a preocupação com o processo de transição para o universo digital, porque emissoras espalhadas por todos os estados do país enfrentam “grande dificuldade de migrar para a tecnologia digital, seja por falta de recursos para a compra de equipamentos ou por falta de quadro técnico atualizado no sentido de viabilizar um projeto de digitalização”.

Para resolver a situação, ele defende políticas públicas voltadas a esse segmento, com o incentivo à formação tecnológica e a abertura de linhas de crédito específicas para a aquisição de equipamentos. Sobre financiamento, ele diz que é necessário ampliar as formas de contribuição da sociedade na gestão e manutenção desses veículos, de modo que, além de serem sustentáveis, possam ser públicos de fato.

Um problema ainda maior chegou a ser enfrentado por esses meios. Na discussão do leilão da faixa de 700 mega-hertz (MHz), que será utilizada para oferta de internet em alta velocidade, a 4G, organizações como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) alertaram para a possibilidade de os canais públicos perderem lugar no espectro. Em maio deste ano, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, garantiu que as emissoras terão espaço garantido.

O presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), João Rezende, diz que a digitalização não vai interferir nos meios de comunicação existentes. “[Foram feitos] regulamentos de interferências, estudos de replanejamento de canais no Brasil inteiro, e todo mundo que está hoje [na faixa] está garantido. Ninguém vai ficar fora do ar”, diz. Ele aponta ainda que essa é uma janela de oportunidades para esses meios, já que apenas eles podem praticar a multiprogramação. “Um canal hoje, que é analógico, é um canal. No digital, você pode fazer oito. É um ganho violentíssimo”, avalia.

Diante desse cenário, o diretor-geral da EBC aponta que a digitalização pode ampliar o alcance dessas emissoras. Em 2013, segundo dados oficiais, a empresa chegou a 3.580 cidades brasileiras. A Rede Nacional de Comunicação Pública de Televisão, encabeçada pela empresa e que conta com veículos universitários e educativos, ampliou seu alcance para 55 geradoras e 728 retransmissoras de TV.

“Com a mudança para o digital, tem mais gente nos procurando. A gente já começa a discutir como vai ser a rede do futuro da EBC, essa rede analógica que temos hoje em dia não vai atender às necessidades quando toda digitalização tiver executada, quando a migração estiver pronta. É algo que já nasceu, já está aí, mas, de certa forma, está sendo rediscutido por causa das mudanças de cenário que são impostas para a comunicação como um todo”, destaca Castro.

Fonte: Comunique-se

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